quinta-feira, 24 de abril de 2014

Outono é tempo de desfolhar-se



- Para ser inteiramente franca - Marina disse, com um suspiro, batendo um cigarro no cinzeiro -, não sei se um dia eu o entendi de fato.
- Por que dizes isso? - Suzana perguntou, simpática.

Estavam ambas num café, ao final de tarde de um agosto. Secura, cerrado, calor de dia mas esfria à noite. Nas outras mesas, um homem magro de óculos olhava para fora de forma que não deixava dúvidas que só o corpo estava ali - a alma, só ele sabia. Uma senhora bem vestida  brincava com um bebê risonho, possivelmente seu neto. Uma garota de saia comprida e óculos bebia café com leite e lia Guimarães Rosa. E elas, ali. Marina, recém-solteira, antropóloga, 25 anos. Suzana, 29, sua amiga, professora de artes para o ensino médio. Casada, mãe de um menino chamado Rafael, de 3 anos, que estava nesse momento com o pai e a avó em Minas Gerais.

- Você está me julgando? - Marina perguntou, rindo mas séria.

- Não, Marina, deixa de ser paranoica, bichinha!

- Ok. Desculpa. É só que... ah. Eu não sei. Mas sempre achei que a despeito de to-da-mi-nha-bo-a-von-ta-de, ele era intransponível demais. Não sei se um dia eu o entendi de fato, e quando digo "não sei", quero dizer que: provavelmente não. Acho que ele concordaria. Acho que ambos lamentamos isso. Eu certamente lamento.

- Você acha que ele te entendia? - perguntou Suzana.

- Hm... não. Não sei. Realmente não sei. Sei  que eu me esforçava muito, para ser transparente, para dizer as coisas. Na escola eu aprendi que perífrase é o artifício de dizer de uma forma longa algo que pode ser dito de forma simples. Em outras palavras, encher linguiça. Algo que fiz bastante na escola, aliás - riu. - Em todo caso, acho que talvez eu tenha pecado pelo excesso de perífrases no nosso relacionamento. Mas sempre tive pânico de ser mal interpretada, quando se tratava dele. E o pânico crescia quando tentávamos conversar, porque parecia que a cada palavra que eu tentava utilizar para nos entendermos, ele ficava mais descrente e mais distante. Era bem horrível, na verdade. - Marina apagou o cigarro e abaixou a cabeça. Os cabelos compridos castanhos caíram sobre seu rosto.

- Sabe... eu sou casada com o namorado que conheci aos 20, na faculdade. Antes dele tive um relacionamento bem desgastante por 2 anos. Mas com o Flávio... as coisas são tão simples, sabe?

- Poxa, Suzana, eu fico feliz por você, mas isso não é grande consolo pra mim agora.

- Eu sei. Desculpa! Mas, sabe... Quando eu namorei o babaca lá, o Jonathan, era tão difícil. Tão desgastante, tão irritante. Ele me ridicularizava, me diminuía, minou minha autoestima, passava o rodo quando terminávamos mas achava ruim se eu ficasse com quem quer que fosse. Típico. Enfim. Eu sei o que é um relacionamento difícil, embora eu tivesse 15 anos, e eu sei o que é um relacionamento leve, cheio de cumplicidade, risadas e sexo, que é o que eu vivo hoje, há 9 lindos anos. E eu te desejo isso. - Suzana pegou a mão de Marina e deu um leve apertão.

- Te agradeço, querida. Te agradeço mesmo. Mas não sei se será possível. Acho que ele ficou com uma parte minha, sei lá. - Marina parecia prestes a chorar.

- Pede de volta! – Suzana bateu na mesa de leve.

- Mas não tá com ele porque ele quer! Ele devolveria, se fosse possível. Deus sabe que acho que, em parte, ele gostaria bastante de me ver com outra pessoa, sem nunca mais encher o saco dele. Mas é uma parte que, embora eu tenha entregado de bom grado, se eu quiser de volta, não consigo reaver. Uma parte significativa da minha alma falou "Não, sai fora, eu gostei dessa pessoa brilhante aqui, vou ficar". E sobre se ele me entendia... Não sei, sabe, às vezes eu achava que não e isso me frustrava em dobro porque eu me esforçava tanto para ser clara! Para me desnudar, para ser entendida... E às vezes eu também achava que ele entendia sim minhas necessidades, mas às vezes simplesmente não estava disposto a nutri-las. Acho que ele me entendia, porque nas melhores épocas do nosso relacionamento, ele era absolutamente perfeito. Ele me nutria, ele cuidava de mim de um jeito que nossa. Ninguém faria melhor. Então acho que ele entendia. É, acho que ele entendia, sim. Acho que ele sabia quando parou de me dar o que eu claramente pedia.

- Isso é muito triste - disse Suzana, com sinceridade.

- Sim, é. Mas essa conversa me esclareceu isso. Acho que ele me entendia o suficiente pra que o que tornou nosso relacionamento inviável tenha sido, de fato, a falta de vontade de continuar. – Marina parecia ter absorvido um novo fato.

- E como você se sente sobre isso?

- Triste porque queria continuar. Mas feliz por ele estar livre de algo que pra ele não era libertação, porque pra mim o amor existe é pra libertar, né? Me resta seguir. E ter uma vida tão cheia e plena que, se um dia ele retornar, ele será uma estrela bem brilhante. Mas meu universo vai resplandecer do mesmo jeito, também. - Marina disse, resoluta, pegando o maço de cigarros - E eu vou jogar essa merda fora agora, palhaçada, mais de um ano que eu não fumava...

Suzana bateu palmas:
- Siiiim!

- Estou falando sério. Posso estar triste, mas sei que isso não é o fim da minha vida. É só mais um momento, tão transitório quanto qualquer outro. A vacuidade é minha bróder.

- É?

- É. - disse Marina, tomando o último gole de seu cappuccino - De sobreviver, eu entendo. E hoje faço isso bem melhor.

tigers

for very long i dreamed about
laying by your side
feeling and showing
to be whole inside
now i'm broken once again
i lost everything and i don't know if there's still something to gain

for so long i thought that if you only gave me a chance
i would be able to make it last
maybe forever
now there's nothing you can do
and neither do i

when i dream
i no longer dream about
your lips and your kiss
i dream about death
and leaving
but it will come a moment when i'll dream about living

or i'll leave
for somewhere into the wild
and i want to never been seen again
i want to become a gentle memory
i wanto to fade
from this cynic town
i want to sleep in the ground
until the enlightment comes
or until the tigers find me

sometimes i think they already found me
and i do not care.*

*For Jane, Bukowski